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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

JOGO

Ainda alheio ao fermento da tua boca
ainda faminto no fomento do teu beijo,
eu ando exausto neste tormento
de auscultar as maravilhas
que preparas nos ventos
e de desarmar as armadilhas
que me deixas ao relento;
tu, no entanto, foges
enquanto eu me reinvento
neste jogo de premeditados movimentos...
não vês que nos meus braços
o teu corpo evolui?
não vês que nessa fuga insana
rejeitas uma luz soberana
que só o meu amor possui?

Que as lições dos meus olhos
calem as Eríneas que gritam em ti
a falência do meu nome,
manchado de leviandades
e tu, que pela ausência inventaste
a essência da maldade,
agora tenha a bondade
de aceitar-me a estima primeira
e revidá-la com a paixão verdadeira
escondida na tua falsa castidade

sábado, 22 de outubro de 2011

OLHOS DE ENSEADA

Ajoelhado em meu espírito arrependido
eu repetia obsessivamente
as fórmulas da tua criação,
e quanto mais eu te procurava
nas fugas daquele amor incandescido,
tanto mais me trazias
o berço das tuas desistências,
dissimuladas todas
em descargas mistificadas
das tuas consequências.

Hoje nada é tão forte
quanto esta irrefreável
vontade de te dizer
que aquela ideal desilusão
que minhas mãos te entregaram
sem querer
esvaíra-se na poluta
dissolução do meu prazer

Eu sei que ainda não
os teus vítreos olhos de enseada
capazes de ler
todos os demônios
perdidos em nossas estradas,
mas eles sempre puderam ver
que Deus está em você,
mesmo quando vem a noite profunda
e te transformas numa fúria fecunda
sem perceber...
De todos os inumeráveis motivos
que eu tinha para te adorar
só um foi capaz de me fazer te esperar:
jamais estiveste sozinha
nas milhares de mulheres que ousavas afogar
em meus braços talhados
apenas para te amar...

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

ARQUEOLOGIA

Levitando em meus pecados onipotentes
vou-me, purgando as cicatrizes dos ventos
em minhas faces tão cosmopolitas;
Não há, não houve, nem nunca haverá
nada, ou como, ou do que me recuperar...
do tempo em que passei penalizando meus anseios
nada guardo de palpável,
pois foi um tempo de arqueologia, mineração,
de tudo que nunca soube, nunca fui, nunca pude...
por isso durmo-me
sob os meus umbrais silentes
sem vertentes, sem serpentes:
durmo-me!

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

INTENSIDADE

...
Lanço-me nos abismos profundos da tua saudade
não querendo com esta insistência
um amor capaz de salvar a humanidade,
mas apenas a suficiente ardência
perfeita para a nossa intensidade,
pois se me emprestas
a inesquecível fulgência
deste sublime momento,
dou-te o meu coração sangrento,
sem uma única exigência,
para toda a eternidade...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

PERDÃO

Nada realmente importa
nem ainda nos imortaliza
enquanto tu te labutas
em teu frêmito calado;
Tu te calas, teu silêncio sobe
mas não te escutas
quando dizes meias verdades absolutas;
Meia mulher, furor velado
de noites absurdas,
eu sei quando os teus olhos imoderados
te levam a nos inventar
limites fajutos
sepultados sem luto;
Descansa tranquila dessa preocupação,
pois mesmo aquele grito fértil,
submerso na minha paixão
há de se conformar resignado
com o esplendor do teu perdão

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

SATURNAIS

Teus olhos murmuravam
delírios foragidos em agonia,
lançando astros prostrados em penedias.
Aqueles olhares, naqueles dias
rememoravam-me as Saturnais,
fascínios arrebatados em fantasias
que eu desejava não findassem jamais.


Ainda hoje sublimas
o furor que se amplia
flamejando em torpor
a irresistível lascívia que tu me crias,
e a carícia que exasperas
elevas, aos cimos do verdor.


Tu'alma, êxtase em perene languor,
suave perfume que se esfuma nos ares;
nada nesta vida rivaliza teu sabor
quando os teus olhos me lembram
tempestades nascidas nos mares.

sábado, 15 de outubro de 2011

GUME DA NOITE

Sai a noite e eu sei
que finalmente vais surgir;
novamente trazes no teu quadril
o ritmo que me assola
e nem a Lua me consola
quando danças este ventre impune
nos escombros de madrugadas exangues;
nada te resiste imune,
pois tu és o gume da noite
e trazes nas tuas mãos acesas
a essência do punhal,
o dever da rapina
evidente na salivação de te ver
escondida em ilusões que tu mesma calcinas.

Tudo pode nascer da tua suave evolução,
tradução do fogo inocente,
que só faz evidenciar a minha patética condição:
és adaga em carne quente,
semente de esquivas indolentes
em qualquer noite de verão.

Sai a noite e eu sei
que novamente hão de crescer
flamas no silêncio do teu beijo,
pois tens a boca certa para este impulso pagão,
que só pode ser ordem de algum Deus
muito bom de se crer...

Sai a noite faminta no teu clarão,
mas é impossível decompor a luz
que vem do teu espírito de grilhão;
dá-se a noite por vencida:
és tanto brilho para tão pouca escuridão;
também dou-te por perdida:
és mulher demais para tão pobre adoração...

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

TEU NOME, TUAS ILUSÕES

Minhas almas, todas elas
acalentadas ao embalo do teu regresso
vinham a mim ainda
exaustas, recém-nascidas
desadaptadas aos meus
antigos receios e reflexões.

Já tinhas tudo
e contudo,
ainda me exaurias as horas
tingidas com a voz
do teu espírito,
adornadas com os toques das tuas partidas.
Mas ficas: retida e anônima,
pousada em pulsões impossíveis
comovida e cismada,
talvez mais leve,
mas sempre viajando
prenha de tempestades
entre as inumeráveis preces
que levam o teu nome.

Por favor, se te retiras
convida-me também
a vagar classificando sonhos,
a rumar onde desejos não chegam:
riremos das guerras em cantos,
cantaremos a paz aos prantos
e nestas invasões
povoaremos com a tua voz todas as sensações
para que nenhuma boca
neste mundo de súplicas
pereça seca sem o hálito
das tuas ilusões...

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

NO TEU SORRISO

Sussurro o teu nome
e nisso há tanto prazer
que é impossível te esquecer.
Quero ver-te uma vez mais
com estes olhos agora leves,
mesmo em instantes tão breves,
para que possas ouvir os meus olhares
indisfarçavelmente seus escravos
e talvez por isso mesmo
tão livres nesta prisão
que não sabem mais regressar
sem o gosto intenso do teu coração.

Em verdade, não encontro a mínima vontade
de ti me separar
e nesta noite de solidão
já não me interessa nenhuma outra realidade,
pois felicidade, só há no teu sorriso
que eu sei: não te custa perpetuar...
vem, então, mulher apaixonante
calar na tua boca ardente
o meu interminável rompante.
Nesta noite, finalmente,
só tu saberás quem serei doravante,
e se já fui algo independente
não restará memória relevante...

terça-feira, 11 de outubro de 2011

TUA BOCA

Eu, que sou apenas humano
e não conheço todos os mundos que a tua boca visita e ilumina
eu que sou esse espectador mudo e tenso
da apoteose dos seus silêncios
pousados nos teus lábios ainda não sei definir a tua essência
nem aplacar a tua influência
sobre as marés que circulam
em minhas veias;
não vês que nas tuas mãos
reside o último estandarte
que traz o meu nome?
não vês que no fogo lento
que arde nos teus olhos
se incinerou o espírito da minha resistência?
oh, rainha da minha consciência
se te demoras mais um pouco
sucumbirei aos pés da tua paciência.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ANOTAÇÕES SOBRE A DELIMITAÇÃO DE CRITÉRIOS DE IMPUTAÇÃO CRIMINAL DE SÓCIOS POR ATOS DE CONSELHOS DE ADMINISTRAÇÃO

I. Introdução e Delimitação do Tema

Uma simples e rápida leitura dos artigos pertinentes aos temas relativos à autoria e participação em matéria de delitos empresariais, ou referentes ao direito penal econômico, demonstra a perplexidade e a dificuldade de serem alcançados pontos e critérios de imputação pacíficos. Isto fica patente quando observamos que os próprios títulos de alguns artigos sobre o assunto já trazem estampados essa problemática.
Assim, Schünemann vai falar de “dificuldades relativas à individualização da imputação”, quando trata da responsabilidade penal no que chama de “marco da empresa”.
Todos os artigos vêm buscando estabelecer critérios delimitativos sobre a imputação dos empresários quando do cometimento de infrações através de realidades empresariais e seus aparatos.
Com efeito, o tema é recorrente e se concentra, quase sempre, na dificuldade de se adaptarem os conceitos tradicionais de Direito Penal referentes à autoria e a participação aos delitos ditos empresariais. O debate maior transita acerca da natureza jurídica da imputação do dirigente ou empresário de corporações e empresas de grande porte quando há a interveniência de subordinados que atuam consciente e dolosamente na execução criminosa.
As figuras mais comuns na argumentação dos doutrinadores e articulistas, principalmente europeus, são as da autoria mediata e da coautoria pelo domínio funcional do fato, notadamente com a preferência por esta última, já que é sabido que a doutrina majoritária estrangeira repele aquela primeira figura.
A ideia de uma autoria mediata por um suposto domínio ou influência decisiva de aparatos de poder não conta com grandes e renomados adeptos entre os estrangeiros, tendo sido, inclusive rechaçada pelo próprio Roxin em um de seus textos específicos sobre o assunto. Também o famoso tratadista Muñoz-Conde, entre os espanhóis, não entende que uma autoria mediata seja a melhor saída para a imputação de empresários por conceber, principiologicamente, a coautoria como adequada aos casos empresariais.
Os empresários seriam coautores junto com os subordinados executores diretos dos tipos, ainda que não tivessem participado ou atuado em nenhuma fase de execução material dos delitos empresariais. Prescinde, pois, este autor, da necessidade de intervenção direta na execução do delito por parte dos sócios, entendendo suficiente e óbvio o acordo prévio de vontades através do domínio funcional.
A professora Pérez-Cepeda adverte sobre o caso do executor direto estar totalmente desvinculado da decisão, sendo meramente uma espécie de longa manus, embora doloso. O problema estaria em não haver a vinculação subjetiva deste executor com o nascedouro próprio da decisão, que seria o órgão diretivo da sociedade, afastando o requisito de liame subjetivo entre os coautores, o que poderia levar a uma janela de impunibilidade e desprestígio do direito penal como instrumento inibidor de condutas socialmente desvaliosas.
A solução apontada por esta professora espanhola será a imputação dos empresários e sócios como partícipes (indutores), o que demonstra a dificuldade do tema. Dificuldade doutrinária tal que o eminente Figueiredo Dias chegou a imaginar e pretender criar uma nova figura híbrida, que seria a “instigação-autoria” para resolver o impasse.
Na realidade, trata-se de assunto extremamente complexo e sobre o qual doutrinadores quase sempre têm pontos acertados e outros equivocados na adoção de uma teoria ou outra, sendo, entretanto, razoavelmente mais aceita a teoria que recepciona a coautoria para os empresários e não a autoria mediata.
Este, no entanto, não é o objeto do presente trabalho, se bem que lhe seja necessário lógica e estruturalmente. Tratamos, outrossim, sobre a possibilidade de se encontrar critérios de delimitação de imputação quando estivermos diante de decisões colegiadas que possam implicar em condutas típicas perfeitamente atribuídas ao Conselho de Administração de uma Sociedade Anônima ou de um órgão gestor diretos de uma sociedade limitada e como, a partir daí, seja possível uma imputação subjetiva a seus membros.
Para o recorte específico do presente artigo nos concentraremos apenas nas hipóteses nas quais a responsabilidade dos órgãos de direção da empresa seja evidente, mas haja divergência ou dúvida quanto ao concerto volitivo entre os sócios, perquirindo-se, aí, se é possível a delimitação de princípios para uma imputação individual, segura e indubitável, quanto aos participantes destes órgãos.
Com muita propriedade sobre esse tema disse a professora Susana Aires de Sousa:
“As dificuldades de imputação individual dos fatos criminosos realizados no contexto empresarial crescem à medida que alargamos o campo de análise.”

Por isso fizemos o caminho inverso e diminuímos o campo de análise apenas sobre a questão da responsabilidade individual em contextos de decisões colegiadas, notadamente quando se trata de delimitação de critérios que possam evitar tanto uma ampliação excessiva e inconstitucional do conceito de autor, quanto conceitos que levam a um inevitável déficit de punibilidade e falta de “efetividade preventiva”, segunda a mesma Pérez-Cepeda.


II. Primeira Questão Preliminar: Devem os Princípios do Direito Penal Clássico sobre a Imputação Pessoal ser aplicados à Realidade Empresarial?

A primeira questão que deve ser enfrentada, para que se estabeleçam princípios válidos sobre a imputação em delitos sócio-econômicos é exatamente se os princípios do Direito Penal clássico garantista devem nortear ou não a resolução dos impasses nesse tema. Isto significa, na discussão sobre se há a necessidade e a possibilidade (política, sem dúvida) de serem delimitados critérios de imputação que sejam exclusivamente relativos e pertinentes aos crimes econômicos, afastando-se dos tradicionais conceitos e estruturas longamente construídas pela antiga dogmática criminal.
Duas correntes principais e antagônicas se formaram sobre o assunto, partindo de pressupostos distintos. A primeira delas ressalta que, dada a natureza peculiar dos delitos financeiros, é necessário que sejam flexibilizados e alterados os critérios de imputação clássicos e aplicáveis aos crimes comuns. Alguns autores, como Mariano Longobardi, entendem como natural e fora de dúvida que

“la persecución penal de los ilícitos socieconómicos demanda critérios de imputación propios que em algunos casos diferem radicalmente de los aplicables al Derecho Penal clássico.”

Este pensamento parte do pressuposto de que a punibilidade, ou melhor, a persecução dos delitos que são cometidos através ou no ambiente empresarial, resta prejudicada diante das dificuldades notáveis de imputação pessoal através do instrumento repressivo estatal já existente. De fato, a realidade que permeia os ilícitos contra a ordem econômica em geral parece ter reordenado e redirecionado todas as discussões em Direito Penal e Criminologia.
Não resta dúvida de que novas estruturas vinculadas ao capitalismo globalizado alteraram sobremaneira as próprias formas de organização criminosa e de cometimento de ilícitos, que por sua vez também atingem níveis muitos mais potencialmente lesivos em termos sociais, políticos e econômicos.
Não há dúvidas, também, de que várias dessas organizações econômicas mantém um nível quase promíscuo e dúbio com atividades ilícitas e que suas formações sociais e organizacionais favorecem a dificuldade alarmante de responsabilização criminal dos verdadeiros e relevantes mentores de crimes. Os partidários da teoria de que é necessário o estabelecimento de regras de imputação próprias para os crimes econômicos partem dessas premissas, mas quase sempre identificam e equiparam essa criminalidade com um tipo de organização criminosa que atua à margem do marco jurídico, quais sejam, as máfias, cartéis e redes de lavagem de dinheiro e tráfico de drogas em geral, ainda que estas possam ter negócios duais, ou possuam em seu controle empresas legais convivendo com as ilegais.
Entretanto, os verdadeiros problemas sobre imputação surgem quando se discute acerca de condutas que são oriundas de empresas que atuam inteiramente na legalidade. De qualquer maneira, não há como se negar que esta problemática atual e recorrente de ilícitos empresariais desafia o sistema dogmático garantista em seus fundamentos, principalmente na sua ineficácia preventiva quanto ao cometimento desses delitos, cada vez mais destrutivos no ambiente econômico.
A segunda corrente defende, no dizer de Susana Aires de Sousa, que

“os princípios e categorias clássicos do direito penal podem e devem ser chamados a participar da resolução destas dificuldades. Contudo, em diálogo com a especificidade que caracteriza estes problemas, aquelas categorias devem adaptar-se à realidade problemática de forma a reflecti-la o mais fielmente possível no plano jurídico. Ou seja, acreditamos que os princípios e categorias do sistema penal referentes à matéria da autoria e comparticipação se mantém inteiramente válidos neste domínio, mas que devem ser repensados no quadro específico do contexto empresarial.”

Quando a referida autora portuguesa sugere este “repensar” dos princípios e categorias da dogmática criminal clássica, principalmente os referentes à autoria em delitos empresariais, está a mesma a ponderar sobre os limites que uma ampliação desmedida de imputação (baseada exclusivamente no critério de necessidade de instrumentos punitivos). Ou seja, o argumento de que uma nova realidade fundamenta necessariamente o abandono das categorias do direito penal clássico não pode prosperar sem que princípios políticos e constitucionais possam sofrer graves riscos. Se é verdade que os conceitos tradicionais podem não atender aos reclames e demandas pragmáticas e passíveis de evitarem novas figuras delituosas, também é verdade que princípios longamente sedimentados de garantias não podem ser negligenciados sem a desnaturação da legitimidade do próprio Direito Penal.
Alguns autores chamam atenção para esse risco, ressaltando a necessidade de adesão e não abandono aos direitos e garantias fundamentais, bem como aos princípios basilares construídos pela doutrina penal jusnaturalista e liberal penal. Muñoz Conde está entre eles, como se lê na seguinte passagem anotada por Pérez-Cepeda:

“tendências que caracterizan el moderno derecho penal que en aras de uma eficácia preventiva más simbólica que real, funcionaliza conceptos dogmáticos hasta unos limites claramente incompatibles con los principios de legalidade y intervención mínima característicos del derecho penal de un Estado de Derecho.”

Este também é o entendimento da já citada professora Pérez-Cepeda, que se inclina pela opção de uma completa separação de soluções para os diferentes tipos de criminalidade (organizada e econômica) quanto à adoção de critérios de determinação de autoria. Para a docente de La Rioja, a solução de igualar os crimes econômicos com os típicos de delinquência organizada pode redundar em um prejuízo para a recepção dos princípios fundamentais de caráter constitucional, garantidos pela dogmática, que assim perderia seu sentido.
Em passagem sobre o tema, ressalta Pérez-Cepeda que, sob a justificativa de se debelar mais eficazmente a criminalidade organizada e ampliar o rol das exceções previstas para configuração da autoria para a delinquência econômica, incorre-se em graves riscos de que tais exceções acabem se estendendo a todo o Direito Penal e aos delitos comuns. A solução apontada pela autora é a aceitação da teoria da autoria mediata apenas no tocante à criminalidade econômica, mantendo-se os critérios da dogmática tradicional para a preservação da legalidade constitucional . Este também é pensamento do professor Carlos Pérez Del Valle, quando assevera que:

“El marco constitucional del derecho penal económico no puede quedar colmado sin hacer referencia a los princípios constitucionales esenciales em los que se desenvuelve el derecho penal en general y a sus particularidades en el ámbito de la actividad económica.”

No mesmo diapasão, é preciso ressaltar que ainda que se aceite a possível existência de um direito penal autônomo, este ramo do Direito teria também que trabalhar com elementos dogmáticos cuja valoração tem que estar vinculada aos princípios constitucionais, já que toda e qualquer valoração necessita estar balizada por princípios (se quiser contar com o requisito de legitimidade estrita) .
A existência inegável de particularidades e peculiaridades dos tipos de delitos econômicos, portanto, não pode justificar um afastamento do que Schünemann denomina de “optimização da proteção dos direitos fundamentais”. Sob a ideia de se fazer frente a demandas preventivas específicas não estariam autorizadas ampliações de competências estatais divorciadas dos critérios constitucionais delimitativos dos direitos fundamentais.
Deste modo, a observância dos princípios clássicos garantistas do Direito Penal impõe-se como medida necessária à vinculação do Direito Penal Econômico à legalidade e legitimidade democrática de um Estado de Direito . Em matéria de delimitação de critérios de imputação esta regra não pode ser negligenciada, tornando-se imperiosa a aplicação das construções da dogmática penal clássica às hipóteses de delinquência econômica.


III. Da Cautela de se Observar Caso a Caso em Matéria de Crimes Econômicos

Outro ponto que deve ser observado, antes da solução sobre quaisquer que sejam os critérios de imputação em crimes econômicos, é o de se investigar sempre o caso concreto. Esta é uma ressalva, poder-se-ia objetar, extremamente elementar e válida previamente a qualquer imputação, mesmo em crimes comuns. Entretanto, em matéria de delinquência econômica ela ganha mais vulto, na medida em que qualquer reducionismo a sistemas generalistas e funcionais poderia redundar na consagração de responsabilidade penal objetiva.
Ainda que seja desenvolvida uma teoria própria sobre a responsabilidade dos dirigentes e os limites de suas imputações, quando se trate de decisões oriundas de corpos colegiados, esta teoria não poderá prescindir de uma investigação particularizada e aprofundada sobre o caso específico daquela empresa e não partir do pressuposto de que todas as empresas são iguais em suas organizações e distribuições de funções. É nesse sentido que se desenvolvem as observações feitas pelo festejado professor português Figueiredo Dias, secundadas por Susana Aires, nos seguintes termos:

“Na verdade, a possibilidade de aplicar, no domínio da criminalidade empresarial, os princípios relativos à autoria passa, segundo cremos, por uma análise acentuadamente casuística. Com efeito, julgamos que só caso a caso será possível determinar qual o papel desempenhado por cada um dos intervenientes e, em particular, averiguar da responsabilidade dos órgãos dirigentes da empresa. Todavia, segundo cremos, os princípios clássicos relativos à autoria e participação ainda cumprem um importante e necessário papel na resolução de alguns dos mais intricados problemas que dominam a autoria criminosa no contexto empresarial.”

Ou ainda, a mesma autora, um pouco mais adiante, em seu estudo em homenagem ao professor Figueiredo Dias, já ser referindo sobre a sua posição em relação à teoria do domínio do fato em ambiente empresarial:

“Todavia, deve sublinhar-se que são as particulares circunstâncias de cada caso que determinam ou não a existência de um domínio do facto por parte do ‘homem sentado à secretária’. E essa deve ser a questão principal a ter presente, sob pena de os quadros teóricos e sistemáticos vigentes em matéria de autoria se imporem à realidade dos factos ao invés de serem dela seu reflexo.”

Esta natural disposição talvez se explique por duas razões. A primeira diz respeito ao próprio mandamento de se ater à subjetividade para a legal e democrática delimitação da imputação. E isso, como já dissemos, tem que se referir a qualquer delito, seja de Direito Penal Clássico ou Econômico. A segunda se refere ao singular fato de que as naturezas organizacionais das empresas diferem muito entre si e não apenas da natureza das organizações criminosas em geral.
O que queremos ressaltar é que muito se tem discutido sobre as dificuldades de se estabelecerem critérios de imputação para os crimes econômicos, dadas as circunstâncias ímpares dos cenários empresariais. Seria, e é de fato, extremamente delicada uma simples transposição dos conceitos, especialmente os dogmáticos, de Direito Penal Clássico para os crimes econômicos. Nesse ponto, muito se fala sobre a estrutura das empresas, tendo inclusive Gómez-Jara Diéz apontado para o atual fenômeno da “descentralização e funcionalização das empresas” ensejando “o estabelecimento de vínculos transversais em detrimento de uma hierarquia rigidamente linear” . No mesmo texto, no parágrafo seguinte, constata o doutrinador:

“En resumen, las especiales características de las empresas modernas – por lo menos aquellas con uma complejidad considerable, que son las que plantean principalmente los problemas de imputación em derecho penal – conducen a uma impossibilidad de la aplicación de la figura del ‘autor detrás del autor’.
(...)
El entendimiento actual de las empresas dificulta terriblemente oberservalas como objetos sometidos al control de unas personas. Una vez que, en estrecha vinculación con el concepto de hierarquía, si comienza a observar el fenómeno de autoorganización empresarial, la pregunta sobre quién domina la organización recibe la siguiente respuesta: ella misma.”

Ora, muito bem. Isto justifica um cuidado redobrado e especializado sobre a criminalidade empresarial, mas também não pode deixar concluir que toda a criminalidade empresarial é igual, porque as empresas não são todas iguais. Há realidades muito distintas que podem variar enormemente, sejam as empresas limitadas, de capital aberto, etc. Neste último contexto, as formas de organização interna são extremamente díspares, não se podendo apontar uma única e invariável estrutura empresarial associativa como fundamentadora e ponto universal basilar para o estabelecimento de uma teoria de imputação genérica.
Assim, antes de se falar em se há autoria direta ou mediata (seja por critérios roxinianos ou não), ou se há participação em delitos empresariais, é preciso levar a cabo a análise do caso concreto. Se naquele determinado modo de estruturação de funções específica, daquela empresa, naquelas circunstâncias fáticas há ou não autoria ou participação. Talvez seja por isso que, mesmo aqueles que se posicionam a favor do reconhecimento da autoria mediata por domínio da organização empresarial, tomando de partida os conceitos de Roxin também admitam que a significação do caso concreto seja anterior à uma possibilidade de imputação genérica. Em recente artigo sobre o tema, Bruna Martins Amorim Dutra exemplifica esta posição:

“Saliente-se que a construção roxiniana não pode ser vista como uma panaceia para a totalidade dos casos de delinquência empresarial, não cabendo sua invocação para justificar a imputação de todo e qualquer ilícito que ocorra no seio da organização ao seu dirigente, sem que se perquira acerca da contribuição conferida ao delito e da consciência e vontade no sentido do seu cometimento. Mostra-se indubitável que a utilização da teoria do domínio da organização como critério de imputação delitiva a título de autoria mediata deve respeitar o processe de imputação objetiva e subjetiva inerente a um direito penal garantista, respeitando-se, portanto, os direitos fundamentais da pessoa humana.
(...)
Assentada essa noção, é cabível afirmar que a imputação penal do sujeito a título de autor delitivo exige a verificação do domínio do fato no caso concreto, aferindo-se se ele, efetivamente, detinha o controle da prática delitiva sob os pontos de vista subjetivo e objetivo.”

Ainda no mesmo sentido, pode-se ler também no livro de em Hermann Manheim, Criminologia Comparada:

“uma vez aceite o princípio legal segundo o qual as pessoas coletivas são, como tais, sujeitos passíveis das reações criminais, importa examinar duas questões: em primeiro lugar, por que ações deverá a sociedade ser responsabilizada e,em segundo lugar, em que medida devem ser corresponsabilizadas e punidas as pessoas individuais que atuam em seu nome. Para responder à primeira questão, deve partir-se da chamada doutrina do alter ego, segundo a qual uma sociedade é responsável pelos atos dos seus órgãos, isto é, os diretores e outros empregados situados em posições hierarquicamente superiores com capacidade de decidir em nome da sociedade, sem esquecer que, em última instância, e em relação a cada caso concreto, competirá ao Tribunal marcar a linha de fronteira .”

Note-se como, mesmo para um autor como Manheim, a preocupação e a constatação que chegamos nesse tópico parece tranquila e evidente.


IV. Sobre a definição de Critérios de Imputação para os Crimes Comissivos em Ambiente Empresarial

Ressalvadas as observações feitas nos itens II e III do presente trabalho, referentes à necessidade de serem observados os princípios do Direito Penal clássico garantista (como condição de validade democrática do Direito Penal Econômico) e de serem anotados os dados dos casos em concreto, passemos à primeira aproximação sobre a definição de critérios sobre a imputação em crimes dessa natureza. No estrito objeto deste singelo trabalho, só nos interessará aquele contexto de decisões empresariais colegiadas. No primeiro tópico trataremos dos delitos comissivos, quando a decisão sobre a ação delitiva parte de um órgão colegial.
Sem dúvida, hoje em dia, parece descartada a teoria que entendia a existência de um “delito colegial autônomo” . Na verdade tratava-se de um caso de imputação coletiva, partindo da ideia de uma responsabilização meramente por compor um colegiado. Assim, mesmo reconhecendo a existência de poderes de organização e delegação nos conselhos de administração empresarial, a responsabilidade seria sempre de todos os componentes, independentemente do que cada um tivesse realizado ou omitido, no concerto com fins ilícitos.
Talvez justamente pela constatação da dificuldade de individualização da imputação, em matéria probatória e de outras impropriedades dogmáticas é que estas primeiras doutrinas foram se formando, postulando um abandono à perquirição das responsabilidades individuais. Pode se objetar que o próprio formulador desta teoria do delito colegial, o professor italiano Rende, chegou a reconhecer que a admissão de um a natureza unitária do ato colegial não poderia significar uma resposta penal igual para todos os membros do órgão colegiado sem uma análise para cada um “de qual tenha sido seu comportamento individual na adoção do acordo” .
Desta forma, mesmo para este autor, a responsabilização penal não seria inevitável para um membro de um órgão colegiado por decisões criminosas oriundas deste. Sobre este tema assim concluiu a professora Pérez-Cepeda:

“El propio autor de esta tesis reconoce que, e lacto colegial no puede constituir un haz que aglutine a todos los administradores tratándolos em igualdad de condiciones con independencia de cual ha sido su comportamento individual en la adopción del acuerdo.”

As contradições desta teoria de um suposto delito colegial, bem como das teorias unificadoras da autoria, nos levam ao reconhecimento de que partindo de um sistema penal que queira se ater às suas matrizes de legitimidade política, será forçosa a adoção de responsabilização sempre individual, que faça a distinção entre os diversos graus que a culpabilidade dos agentes envolvidos possa ter entre si, possibilitando respostas criminais também diferenciadas e individualizadas.
Isso fica bastante evidente quando estamos diante de uma hipótese de voto dissidente devidamente provado em ata de assembleia. A chamada “prova liberatória” confronta qualquer aspiração à adoção de uma teoria que estenda a responsabilização a todos os membros de um determinado conselho, porque, essencialmente, contraria a própria ideia de responsabilidade colegial. Quando se entende que provas liberatórias podem eximir de responsabilidade a qualquer membro por sua decisão individual conflitante do “concerto criminoso”, isso necessariamente significa que este concerto de fato não existe, ou se existe está sendo prematuramente igualado ao “societas sceleris”, o que é inadmissível como já registramos. Conclui, neste ponto, ainda a professora Pérez-Cepeda, que nos casos de decisões colegiadas é preciso que sejam observadas

“Las reglas generales de la autoría y participación antes mencionadas, que permiten considerar coautor al sujeto que en un organismo colegiado vote dolosamente en favor de acuerdo delictivo, exonerando de resonsabilidad al miembro que votó en contra, se abstuvo o estaba ausente, salvo que pueda imputársele el delito en comisión por omisión, cuando assume un compromiso específico ante un riesgo concreto de impedir que se realice en el resultado.”

Para o objeto do presente trabalho não adentraremos na problemática decorrente do tema discutido sobre se há autoria, coautoria ou participação quando se trate de intermediários na execução do crime, estranhos ao órgão colegiado. Só nos interessarão as hipóteses de delitos advindos claramente de uma decisão de um conselho de administração, através da empresa e em seu próprio nome. A discussão sobre os casos em que funcionários ou diretores é que tenham recebido a ordem de executar o delito e as relações desta delimitação de autoria ficarão para outra oportunidade. Portanto, é sobre a posição do dissidente ou do minoritário que nos ocupamos.
A conclusão é de que, em delitos comissivos, desde que não haja dúvida sobre a origem da decisão (e quando não se possa remeter a imputação a subordinados diretamente do conselho) não podem responder penalmente aqueles que não tenham tido o condomínio sobre a decisão ilícita ainda que na fase preparatória. Ressalte-se que este condomínio se refere ao delito ao delito e não a um domínio que possa ser meramente representativo, ou seja, o simples fato de compor um conselho não pode significar um domínio do fato, mas sim uma atribuição e poder ou não poder votar de acordo com esta vontade ilícita.
Assim, a mera proximidade e influência potencial sobre a decisão, no exercício de funções que de fato confiram ao agente este poder, não bastam para a fixação da imputação pessoal, pois o domínio do fato não significará uma ascendência administrativa, mas a efetiva atuação dolosa no materializar do delito em si. Não se pode falar, portanto, de um simples domínio da possibilidade de lesar o bem jurídico através de posições ou funções, mas somente de um domínio atuante específico para aquela infração. Caso contrário, estaríamos diante de uma verdadeira responsabilidade normativa pura, com riscos altamente apreciáveis de uma responsabilização objetiva. Este parece ser o sentido que o acórdão abaixo colacionado referendou, como se lê no seguinte trecho:

“A desnecessidade de minuciosa indicação acerca da participação de cada agente nos impropriamente denominados crimes societários ou de autoria coletiva é tema assente na doutrina e jurisprudência , de onde se colhe orientação permissiva com relação à narrativa sintética, desde que minimamente demonstrado o nexo entre o agente e o crime, e compreendida a acusação, viabilizando o regular exercício do direito de defesa, o que se mostra salutar a fim de impedir que a complexa estrutura de uma pessoa jurídica sirva de entrave para a persecução penal quando evidenciada a materialidade.

Todavia, é também necessário que haja parâmetros para tal aferição, a fim de que não se permita nociva imputação de responsabilidade objetiva, de modo que, ainda que a narrativa seja genérica, tal não significa dizer que prescinde da demonstração dos suficientes indícios de autoria que devem pesar, se não sobre cada denunciado individualmente, ao menos sobre um grupo destacado e inequivocamente identificável.

Com relação à autoria, dada a espécie delituosa, temos que os estatutos societários são um início de prova para verificá-la, extraindo-se deles os indícios suficientes sobre quem detém o poder de gestão e decisão sobre o aspecto fiscal, assim identificando formalmente quem seriam os agentes com domínio final sobre o fato, para após a instrução buscar tal confirmação em profundidade.

Nesse prisma, não vejo obstáculos ao oferecimento de denúncia em face de todo o quadro de sócios, desde que se extraia do estatuto que todos detinham poderes de gerência sob o aspecto fiscal na data dos fatos, pois se as decisões forem assim deliberadas, há indícios de que todos estariam cientes da postura adotada pela empresa.

É nesse contexto que a análise dos documentos de fls. 1198/1230 (alterações contratuais) toma contornos relevantes, sobretudo porque, dos dez denunciados, apenas dois figuram com poderes de administração e gerência das sociedades, exatamente aqueles que tiveram a denúncia recebida (vide especificamente fls. 1200, 1206, 1209, 1216 e 1225).

Por outro lado, inexistem quaisquer outros indicativos na denúncia da atuação dolosa desses sócios minoritários para a consecução dos injustos narrados na inicial acusatória.

Nesse contexto, a denúncia conteve narrativa absolutamente insuficiente acerca da eventual conduta praticada pelos ora recorridos, sequer lhes possibilitando o exercício da defesa, uma vez que figuram na peça acusatória tão-somente por constarem no quadro societário, ainda que não tenham tido posição gerencial e mesmo sendo sócios minoritários.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de onde se extrai o entendimento sobre a possibilidade de denúncia não pormenorizada nesses casos, também é no sentido de avaliar o caso concreto e de não receber a denúncia oferecida sem um mínimo de liame do denunciado com a prática delituosa. Vejamos:

(...) SÓCIA QUOTISTA MINORITÁRIA QUE NÃO EXERCE FUNÇÕES GERENCIAIS - NECESSIDADE DE DESCRIÇÃO DE DETERMINADO COMPORTAMENTO TÍPICO QUE VINCULE O SÓCIO AO RESULTADO CRIMINOSO. - O simples ingresso formal de alguém em determinada sociedade simples ou empresária - que nesta não exerça função gerencial nem tenha participação efetiva na regência das atividades sociais - não basta, só por si, especialmente quando ostentar a condição de quotista minoritário, para fundamentar qualquer juízo de culpabilidade penal. A mera invocação da condição de quotista, sem a correspondente e objetiva descrição de determinado comportamento típico que vincule o sócio ao resultado criminoso, não constitui, nos delitos societários, fator suficiente apto a legitimar a formulação da acusação estatal ou a autorizar a prolação de decreto judicial condenatório. (STF - HC 89427 – Rel. Ministro Celso de Mello - DJe-055 DIVULG 27-03-2008 PUBLIC 28-03-2008)

(...)

Tampouco o fato de terem dado “carta branca” aos denunciados (fl. 1292) pode servir como imputação objetiva ou subjetiva, pois a escolha por um sócio-gerente não necessariamente revela alguma conduta dolosa praticada por todos os sócios. Entender em sentido contrário seria admitir a vedada responsabilidade penal objetiva da pessoa física.”


Note-se que a posição esposada neste recentíssimo acórdão se afina com a de Augusto Silva Dias, que, adotando a tese da coautoria para os casos do dirigentes (se bem que quando há um subordinado), reforça o pensamento de Schünemann assim se expressando:

“Co-autor não pode ser qualquer dirigente, mas só aquele que opera no mesmo seguimento da organização em que a conduta é realizada e que, portanto, pode influenciar a execução e atualizar nela o seu contributo. Obtém-se desta forma uma espécie de ‘domínio-da-organização-para-a-execução-do-fato’, limitando o papel de co-autor ao midlle management.”



V- Do estabelecimento sobre a posição de garante em crimes econômicos: aceitação e limites da teoria
Da flagrante impossibilidade de se admitir a legitimação de uma figura de culpa coletiva vem também a reserva quando se tratar do estabelecimento limites dos deveres dos membros de conselhos de administração. Esta reserva significa que ninguém pode ser responsabilizado pelo crime de outrem mesmo que sua posição possa significar na assunção de um dever de impedir um risco ou perigo concreto para a empresa.
É certo que o dever do administrador não pode se estender à obrigação de impedir que os outros sócios deliberem a favor de um cometimento ilícito. Desde que fique provado que a conduta do sócio foi a de agir conforme este compromisso de não lesar o bem jurídico tutelado, sua incriminação torna-se inviável, respeitando-se os princípios da individuação e da culpabilidade. Este o escólio de Pérez-Cepeda:

“Aunque es certo que, en ocasiones el deber de salvaguarda del bien jurídico es assumido conjuntamente por vários sujetos, nadie tiene la obligación de que los demás traten de evitar un resultado lesivo para el bien jurídico, sino sólo de comportarse él conforme al compromiso adquirido de impedir que un riesgo o un peligro concreto para la empresa, socios o terceros se realice en el resultado. Por ello, el interveniente em el acuerdo que vota encontra el ausente o, incluso, el que vota em blanco sólo serán responsables si tienen uma posición de garante específica.”

Isto traz a foco o debate sobre a posição de garante específico que possa ter o sócio, importando esta posição em um dever específico ante um risco concreto de impedir que se realize o resultado típico. Ora, ainda que se entenda que nestes casos os minoritários vencidos, ausentes e os que se abstiveram, possam ser responsabilizados, é preciso delimitar as condições desse dever e os limites à esta integração. Nestas hipóteses não há como se falar em participação na configuração da vontade delitiva, já que os agentes não tomaram parte na deliberação da ação a ser tomada pela empresa. Esta claro, outrossim, o dever de ter que evitar o resultado lesivo. Para este impasse, o melhor é tentar visualizar o poder material de fato que possuía o sócio de através de sua conduta ter interferido na causalidade do evento típico.
A partir daí já se pode fazer algumas observações sobre os limites ao papel de garantidor nos crimes econômicos, apesar desse tema ser muito controvertido na doutrina. O próprio reconhecimento da existência de um dever de garantia empresarial já é controvertido, como tem se visto principalmente na doutrina europeia. É claro que os limites ao papel de garantidor estão adstritos aos próprios limites principiológicos do Direito Penal Clássico e tem que se referir a um caso em concreto. Entretanto, eles podem ser entendidos como limitações mais atentas à realidade empresarial, justamente por levarem em conta as especificidades desse tipo de delinquência.
O primeiro limite diz respeito às funções concretas desempenhadas e controladas pelo sócio que se pretende imputar. É necessário que sua responsabilização só seja possível se e quando for no âmbito de sua direção ou departamento a que o fato típico faça referência e seja diretamente relacionado.um determinado seguimento de direção dentro da estrutura empresarial tem que ser passível claramente de absorver a responsabilidade pela conduta lesiva. O sócio a ser responsabilizado deve necessariamente participar deste âmbito. Isto exclui pessoas que se querem exerciam funções passíveis de uma potencial interferência na formação do concerto criminoso, mas é claro que isto só é válido para empresas, cujas realidades forem sofisticadamente complexas e nas quais o poder de decisão seja extremamente fragmentário e disperso por diferentes órgãos diretivos. Mais uma vez Schünemann anda por este caminho, como podemos ver em passagem citada por Susana Aires:

“Os deveres de garantia de um membro do conselho de administração de uma direção empresarial organizada segundo o princípio da divisão de competências entre departamentos se limitam ao âmbito por ele dirigido e, por isso, apenas terão maior amplitude quanto a questões fundamentais que competem a toda a direção empresarial.”

O segundo limite se refere não à delimitação dos “espaços de responsabilidade”, mas à uma possibilidade de controlar os riscos sobre o resultado. Está na potencialidade concreta de controle sobre as pessoas envolvidas e sobre as decisões de seus subordinados esta virtual possibilidade de se evitar o risco. A posição de garantia, portanto, não pode ser genérica, mas real, ou seja, claramente deduzida dos fatos concretos e não de um dever simbólico e normativamente definido.
Mais uma vez, neste sentido vem se encaminhando a doutrina mais equilibrada na Europa, como se depreende do seguinte trecho:

“Deste modo, concordamos com Silva Sanchez ao defender que a posição de garantia reveste (e, quanto a nós tem de revestir) uma natureza muito mais específica na criminalidade da empresa: aparece como um compromisso de contenção de riscos determinados para bens jurídico penais, cabendo às regras de atribuição de distribuição de competência um decisivo papel na delimitação dos concretos riscos que o sujeito deve controlar, bem como na determinação das medidas que deve adotar para impedir um resultado jurídico-penalmente desvalioso sob pena de cometer um delito omissivo.”

A posição do garante em delitos empresariais se sujeita a critérios mais específicos, mais delimitados, portanto. As medidas que sejam necessárias para que se evite ou se contenham os riscos previstos pela lei penal tem que estar dentro da possibilidade real de influência do sócio, sendo certo que se o mesmo é vencido no conselho (e isto se traduz em ter exaurido esta potencialidade de evitar os riscos) não pode sofre uma imputação criminal, pois no seu “âmbito de competência”, segundo Silva Sanchez, tomou todas as medidas tendentes a evitar o resultado desvalioso pela lei penal.
É lógico, entretanto, que todas essas conclusões só podem ser tomadas partindo-se de situações fáticas concretas como ressalvamos no item II.
O crime comissivo por omissão depende de uma clara confluência de poder decisório real e consciência da potencialidade do domínio do fato, de acordo com as atribuições do sócio em questão. A posição do garante nunca pode ser genérica, mas ao contrário, dependerá sempre de uma interpretação pontual em se aquela específica pessoa honrou com a observância de seu compromisso de contenção do risco que envolvia sua posição ou qualidade. Se ela honrou mas os demais não e não havia possibilidades fáticas de nenhuma intervenção real que derrogasse ou invertesse tais fatos o risco de se estender a imputação a todo conselho é da transcendência da pena, que perderia inevitavelmente seu caráter individual, ferindo-se o disposto no artigo 5º, inciso XLV da Constituição Federal, como é elementar .
V. Conclusão

Não resta dúvida de que a chamada “criminalidade da empresa” suscita grandes discussões acerca dos temas clássicos de Direito Penal, mormente sobre imputação. Há que se reconhecer que a delimitação da responsabilidade penal no âmbito empresarial não pode ter as mesmas bases teóricas inspiradoras dos conceitos clássicos nascidos e construídos em contextos políticos, sociais e econômicos completamente diversos dos sias de hoje. A perplexidade que o assunto causa é notória na doutrina especializada, principalmente quando se constata que a realidade dos desenvolvimentos pelos quais as empresas passaram no seio do próprio capitalismo não pode ser devidamente retratada e abarcada pelo arcabouço dogmático dispo nível pelo Direito Penal.
Como constatou Elena Ceballos, as categorias clássicas sobre autoria e participação “saltan em pedazos”, se transplantadas sem adaptações às estruturas empresariais dominantes atualmente, fortemente hierarquizadas e difusas. Os problemas atinentes à delimitação da imputação criminal nestes tipos de delitos são tantos que versam desde a questão se é possível uma responsabilidade dos próprios órgãos empresariais, até a de a que título devem ser punidos só administradores e sócios em contextos empresariais. Eles também abarcam as questões sobre qual a natureza do domínio do fato para gestores, se é possível a fixação de um dever genérico de garante nessas situações e como se definir este dever.
A discussão se há imputação a título de autoria direta, mediata por domínio da organização ou comissão por omissão, é longa e vem se desenvolvendo de forma bastante rica, principalmente no direito europeu, fato que vem concentrando os maiores e melhores debates em Direito Penal . Para o presente trabalho é interessante ressaltar as hipóteses de sócios minoritários vencidos, ausentes ou que se abstiveram, pois aqui está a radicalização dos debates sobre os limites da imputação criminal. Com efeito, nesses casos há uma nítida exposição de divergência de vontades que revela os paradoxos da adoção de algumas teorias de responsabilização. Revelam um confrontamento em relação aos critérios constitucionais garantistas.
A própria ideia de se criar uma figura de garantidor especial para delitos econômicos esbarra nas advertências sobre os riscos de responsabilização objetiva (e seus naturais efeitos colaterais políticos) sem a ressalva de se ater a alguma delimitação do que seja domínio individual do fato. Assim, tanto quando Muñoz Conde propõe uma analogia entre a responsabilização por crimes contra a administração pública, ou quando Schünemann busca critérios hábeis para fundamentar a responsabilidade dos administradores e gestores empresariais, procura-se uma maneira de definição de um conceito de domínio, que ao mesmo tempo contemple uma nova realidade (e por isso mesmo não permita incongruências causadoras de “janelas de impunibilidade”).
Esta realidade citada significa uma especial estrutura hierárquica, divisão do trabalho, sistema de condutas, riscos assumidos e perigos fáticos e potenciais aos bens jurídicos tutelados do ambiente empresarial. Mas essa realidade também significa que essas categorias têm que ser analisadas (nos casos em concreto). Também sob o prisma do campo de controle individual, ou seja, em como elas ao mesmo tempo também podem dominar o homem inserido em seus contextos. A pessoa domina e é dominada pelo mercado, pela empresa, etc. O sócio controla e é controlado. Em algumas situações se vê inclusive tolhido de ação diante de circunstâncias ímpares que só podem ser determinadas e deduzidas pela instrução probatória.
Em muitos aspectos, o sócio determina tarefas e tem o poder de mando, mas também é comandado e controlado por forças nem sempre identificáveis. Embora seja válida, necessária e salutar a tentativa de se adotar uma teoria genérica sobre o estabelecimento de critério de imputação, como os de autoria mediata por domínio da organização ou de aceitação de um dever que fundamente uma estrutura de comissão por omissão, a verdade é que, a insuficiência e fragilidade destas teorias resta evidente, pela própria realidade observável e notória do mercado. Também uma certa contradição interna conceitual fica clara e é exposta na doutrina quando alguns autores parecem querer derivar a responsabilidade de alguma natureza de domínio que não pode deixar de ser nunca, filosoficamente e principiologicamente falando, pessoal e relativa, a um âmbito anímico.
É sempre bom lembrar que mesmo que se aceite a existência de um compromisso de evitar determinados riscos inerentes às funções de membro de um conselho, restará pendente a questão sobre quais os seus limites. Restará em aberto a ponderação sobre quais as ações que podem liberar o agente do resultado da não observância desse compromisso quando a vontade emana do conselho. Não é possível se admitir que não haja compromisso sem uma indeclinabilidade de seu exercício ou que não possa haver uma escusa possível a um dever jurídico. Isto em si mesmo já seria um paradoxo.
O caso de voto vencido de algum sócio que se manifesta e toma todas as atitudes, em seu alcance institucional, contra o cometimento de ilícitos pelo colegiado é um exemplo deste mesmo paradoxo para a doutrina. O próprio Tiedman, defensor do reconhecimento de um dever jurídico extrapenal para os administradores empresariais observou, que:

“Aunque es posible fundamentar uma posición de garante de los membros del consejo de administración, si existe uns dirección colegiada de la empresa esta obligación de protección a la empresa de cualquier daño decae cuando existe uma división horizontal de las funciones.”

Embora seja evidente a fragilidade da ideia de se fundamentar uma suposta qualidade de garantidor baseada em deveres extrapenais, a passagem retro citada foi colacionada para demonstrar como mesmo os seus defensores reconhecem hipóteses de reservas conceituais e exceções aos princípios que pretenderam criar.
Qualquer que seja a justificação da fundamentação sobre o conceito de domínio, quer pelo poder de direção empresarial, quer pela organização, quer pela simples ingerência, o certo é que o que quer que venha a ser “domínio” precisa ser definido em circunstâncias concretas e finitas, sendo inaceitável ser garantidor todo e qualquer um que assuma uma fração de um poder empresarial por si só. Sem que se analise detidamente a potencial amplitude de ação específica do agente será prematura ou arbitrária qualquer imputação criminosa.
Ora, sobre isso, em Schünemann quando este autor aborda o domínio “fático” sobre os elementos perigosos do negócio, este conceito tem uma necessária base de referencia individual e pessoal, o que se torna claro na expressão usada pelo alemão “parte de domínio”. Para maior clareza escutemo-lo:

“Este dominio supone (...) un ámbito espacial de influencia acotado para el garante, en el que se encuentra el objeto peligroso; con la salida de este ámbito de influencia se extingue el dominio material y permanece todavía en todo caso un dominio personal con base en el derecho de dirección remanente.”

Sobre o assunto, muito bem retratando-o o professor Pedro Correia Gonçalves arremata:
“Por outro lado, para se responsabilizar, por comissão por omissão, o administrador ou gestor empresarial que não observou o seu dever de garante, é preciso que, para além da sua responsabilidade em virtude do domínio que possui sobre a organização, que o autoriza a configurar o seu âmbito, exista uma conexão estreita entre o fato ilícito cometido pelo seu subordinado e o exercício das suas faculdades individuais de auto-organização. (...) Por outro lado, em caso algum se deverá desprezar as circunstâncias específicas ou particulares do caso concreto.”

Desta feita, o fundamento para a imputação criminal sempre tem que ser o “exercício da liberdade pessoal, ideia de responsabilidade como sinalagma da liberdade” . O critério para o estabelecimento de qualquer princípio sobre imputação criminal tem que partir da natural “liberdade de conformação” do homem, respeitando sempre uma nítida e indubitável vinculação específica entre o fato típico e o “exercício das faculdades individuais de auto-organização” do homem.

domingo, 9 de outubro de 2011

PAUTA

Nessas noites em que não temos tempo
para sonhos
são seios e mão: unidade;
beijos e ventres: claridade;
clarividência de amores clandestinos
desejos sem destinos
nos enunciados da tua eternidade
identidade da mulher e do menino
calado no idioma do vulcão
martirizado, claudicado pelo cheiro feminino
- muita informação_
chicoteado com cabelos dourados
extraviados no colchão
o palco das deusas, ribalta dos extasiados:
tu, agigantada dita a pauta
eu,nem extenuado digo não

sábado, 8 de outubro de 2011

RAINHA

Tantas coisas podem ser ditas
sobre a tua boca,
mas direi apenas: desejo!

Eu poderia descrever de tantos modos
o teu corpo translúcido,
mas basta que eu diga: cristal!

Eu poderia te chamar de tantos nomes,
todos contidos num só: amor!

Eu poderia te dar tantos predicados
e te fazer tantas promessas,
mas basta que eu te proclame: Rainha!

Vem, então e reina ao meu lado!
Sê a inconteste soberana do meu coração abandonado
e finaliza tudo que em mim está inacabado...

Dar-te-ei uma coroa feita
com as cicatrizes que me adornam os sentimentos frustrados;
e essa coroa com a qual hei de te cingir
eu a farei com os ossos desenterrados
das falecidas rainhas que eu nunca tive e nem terei
se elas não trouxerem o teu nome incrustrado...

Toma! A coroa é tua e as jóias que a enfeitam
são os meus dias de luta,
minhas esperanças e ideais,
além da certeza
de que não há ninguém melhor que tu para ser tu mesma,
a melhor versão de mim,
que tem autoridade para o meu sim
e o poder de veto do meu não...
Vem, reina sobre mim,
decide sobre a vida e a morte
das minhas crenças
e deixa as minhas mãos tensas
percorrerem a tua realeza
tão possível, tão divina
graças à tua inexcedível beleza...

Majestade, ocupa logo o teu trono sagrado
no dia da tua coroação;
eu te serei o súdito único
é verdade,
mas valerei por uma inteira nação!

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

VEZ

Tua voz acende levantes
esquecidos na tua ausência lacerante.
Como uma labareda
a que se alimenta vagarosamente,
eu te espero economizando o furioso rompante
de querer te atacar laconicamente,
no auge perene de uma flama pujante,
que ao queimar eterniza
esse desejo fervente pela vítima,
que é mais comburente
que a imensa voltagem dos teus sonhos sem origem.

Hoje só o espelho inclemente
mostra-me em meio a tua vertigem,
mas queria me ver na profundidade
infinita do teu rosto
ou do outro lado daquelas
resistências fossilizadas
na simplicidade da tua nitidez.
Aceita-me e tudo há de ganhar sensatez,
pois todas aquelas culpas cunhadas
em falsa polidez,
morrerão estilhaçadas
quando nós, enfim,
tivermos a nossa vez...

PENUMBRA

Se é só na penumbra que eu posso te ter
em toda a profundidade,
dê-me a noite que nos teus olhos alimentas,
ou deixe que se apaguem as luzes da cidade...
e então, envolto nas tuas infinitas tormentas
hei de te livrar daquela impossível castidade
encastelada nos remorsos que te inventas...

Se é a maldita publicidade
que te furta os melhores desejos,
dê-me os sonhos que os teus olhos espelham
e me deixa lapidá-los aos lampejos:
logo verás desnuda a tua ingênua vaidade,
inútil após meus milhares de beijos,
que, para serem teus,
se for preciso,
hão de assassinar toda a humanidade...